
Sim, crimes hediondos sempre ocorreram. Relatos históricos sobre
crueldade e sadismo remontam aos primeiros sinais da civilização.
Assistências imensas acorriam ao Coliseu de Roma a fim de se deleitar
com espetáculo macabro em que felinos de grande porte estraçalhavam
carne e ossos de famílias cristãs inteiras.
Nos últimos dos primeiros vinte séculos depois de Cristo uma etnia
passou a ser sequestrada na África e arrastada até os segmentos Norte ou
Sul do continente que habitamos, sendo escravizada e torturada. Seres
humanos eram vistos como mercadoria, como animais a ser comercializados,
como se fossem cavalos ou bois.
O nazismo levou ao paroxismo a selvageria do homem contra o homem.
Seres inteligentes eram dissecados vivos, mutilados, transformados em
cobaias de laboratório simplesmente pela ascendência que nomes de
família denunciavam.
Mas havia uma “justificativa” pervertida: diziam que agiam “em nome da ciência”.
Dirão, pois, que a perversidade e o desprezo pelo gênero humano sempre existiram.
Contudo, o homem sempre dedicou esse desprezo aos que considerava
“diferentes”, alienígenas, mas sempre por integrarem grupos “raciais”
considerados “inferiores” ou por pertencerem a grupos religiosos
considerados “malditos” aos Olhos de Deus.
O que estamos vivendo no Brasil, porém, é diferente. Não tem uma
dessas “razões”, ou melhor, um dos pretextos que psicopatas guindados ao
poder manipulavam para exercerem suas perversões e, com elas,
contaminarem mentes frágeis, como no Coliseu romano.
A guerra político-ideológica irracional que recrudesce no país e que
vê a ferocidade escapar dos recantos mais obscuros dos corações e se
espalhar pela internet antes de ganhar as ruas não tem pretexto, ainda
que siga a ideologia da ferocidade praticada sob pretextos.
Seria menos perturbador – porém igualmente inaceitável e sempre
perturbador – se fosse uma guerra sem quartel entre grupos étnicos,
religiosos, políticos, geográficos etc. Mas não é. A banalização do mal é
que assusta. A futilidade que impele grupos ou indivíduos a praticarem
atos de ferocidade que animal nenhum pode suplantar supera qualquer
conto de terror já escrito.
Entendemos – no sentido de ver um “motivo” – quando um “serial
killer” tira vidas com requintes de crueldade, entendemos quando um
criminoso é torturado nas dependências do Estado ao ser preso, para que
confesse o que sabe ou o que não sabe. Um verdugo é mentalmente doente e
o outro justifica sua selvageria com o “combate ao crime”.
Contudo, não entendemos – e começamos a nem ligar, a ponto de nem
procurarmos entender – quando um pai espanca um filho de oito anos até a
morte por temer que “vire gay” ou quando, após assistir a uma partida
de um esporte, um grupo de torcedores espanca até a morte integrante da
torcida adversária a frio, sem ser no âmbito de briga de torcidas.
A ideologia que apologiza o “politicamente incorreto”, a popularidade
do conceito de “pieguice”, tudo que transforma sentimentos como
comiseração ou respeito à dor alheia em uma espécie de crime de
personalidade parece embasar a insensibilidade e a convivência cada vez
mais harmoniosa que estamos estabelecendo com a barbárie.
Aceitando ou relativizando esse horror que já se integrou ao
cotidiano, conformando-nos em seguir em frente após saber que um pai
matou a pancadas o próprio filho por ver em sua recusa a cortar o cabelo
sinônimo de homossexualidade, coonestamos o caos.
Dizerem que tal horror “existe em toda parte” ou que “sempre existiu”
é o que apavora. É o endosso a que não paremos tudo até encontrar meios
de mudar tal situação.
Dirão, também, que o homem que matou o filho de oito anos é vítima da
ignorância. Nada mais falso. Quantos das classes mais abastadas – e,
portanto, com acesso à educação – cometem o mesmo tipo de crime por
“diversão”?
E o pior é que nem sempre são jovens, com a “justificativa” da
imaturidade – sem esquecer que nunca chegará a maturidade alguma aquele
que age como besta-fera na adolescência.
Nas quase 24 horas que antecederam a composição deste texto, analista
e ativista político que sou não consegui me ater a mais nada. A notícia
sobre o pai que massacrou o filho porque não quis cortar o cabelo se
abateu sobre minh’alma no meio da tarde do dia anterior e ainda não foi
assimilada.
Aliás, torço para que nunca assimile horrores como esse.
Recusar-me a retomar tão facilmente a vida após tomar ciência de tal
horror, ainda que não seja uma decisão, mas uma consequência do estado
de minha psique, talvez seja a forma que encontrei para não sentir que
também estou aceitando esse processo macabro.
Com efeito, o que assusta não é a existência da selvageria de homens
ou grupos de homens, mas sua aceitação generalizada, a convivência
pacífica com o terror, o conformismo com atos desumanos. Essa é a
novidade macabra que suscita uma questão ainda mais perturbadora: quando
– e por que – perdemos a humanidade?
http://www.blogdacidadania.com.br/2014/02/quando-foi-que-perdemos-nossa-humanidade/
Nenhum comentário:
Postar um comentário