Ali Kamel - aquele |
Por Paulo Nogueira, no blog Diário do Centro do Mundo:
Tinha ouvido falar pouco de Ali Kamel, chefe de telejornalismo da Globo, até conhecê-lo no Conedit. É o conselho editorial das Organizações Globo.
Sob o comando de João Roberto Marinho, o Conedit reúne os editores das diversas mídias da Globo para alinhar ações e debater assuntos. As reuniões são realizadas às terças, por volta das 11 horas, no prédio da Globo no Jardim Botânico, no Rio. Frequentei-as ao longo dos dois anos e meio em que fui diretor editorial das revistas da Globo. Quando cheguei, Kamel já estava lá, e ali permaneceu depois que saí.
A referência mais longa que eu tivera dele veio de um jornalista da Abril que o procurara em busca de emprego. A operação deu certo. O jornalista me contou que lera que Kamel valorizava gente que tivesse passado por revistas, por ser mais apta a mexer com palavras. O próprio Kamel passara pela Veja no Rio antes de se fixar nas Organizações Globo.
Kamel não confirma o folclore do carioca simpático, ao contrário de outros editores com quem convivi naquelas manhãs de terça. Seu chefe, Carlos Schroder, um gaúcho afável e sempre com um sorriso no rosto, parece mais carioca que ele.
De um modo geral, o ambiente no Conedit reflete o humor, a alegria, a capacidade de rir dos cariocas. (E também a falta de pontualidade.) Mesmo Merval Pereira, colunista de várias mídias da Globo e ex-diretor do jornal, ri com frequência – uma surpresa para quem lê seus textos em geral num tom de elevada preocupação, quase sempre ligada a um pseudopecado mortal de Lula.
Kamel, pela importância da TV, é uma presença destacada no Conedit. Sua expressão solene sublinha esse papel. Não sei se Kamel costuma beber no bar com os amigos para falar bobagens como futebol, mas não me pareceu.
O que inicialmente mais me chamou a atenção em Kamel, e em muitos outros ali, foi a obsessão com São Paulo. “Os jornais de São Paulo” são constantemente citados, como se representassem o mal. Não sou exatamente um admirador nem do Estadão e muito menos da Folha, mas achava engraçada a presença dos “jornais de São Paulo” nos debates. Nós, jornalistas de São Paulo, jamais nos referimos aos “jornais do Rio”.
Não é exatamente confortável ser um paulista naquele plenário, logo entendi. Eu me sentava num canto próximo da porta, por razões de conforto. “Este é o canto dos paulistas”, ouvi, em tom de brincadeira, uma vez, de Luiz Erlanger, uma espécie de RP do alto escalão das Organizações.
Havia uma alta rotatividade naquele canto. O ambiente é carioca, para o bem e para o mal. E o ressentimento pelo tamanho que São Paulo tomou no Brasil acaba repercutindo, de uma forma ou de outra, em paulistas que participem do Conedit.
Ali Kamel não facilita a vida de ninguém, logo vi. Não é hospitaleiro. Lembro o dia em que Kamel foi apresentado ao jornalista Adriano Silva, na sede da Globo no Rio de Janeiro. Adriano estava sendo contratado com a missão de chacoalhar o Fantástico.
Adriano fizera isso na Superinteressante. Daí o interesse da Globo. Quem negociou com Adriano foi Carlos Schroder, então diretor de telejornalismo da Globo e hoje seu diretor-geral. Eu estava com ambos no prédio do Jardim Botânico quando Ali se aproximou.
Não deu um sorriso para Adriano. Seco, quase ríspido, colocou a Superinteressante na conversa — afirmou que a enteada a lia — para comentar supostos erros da revista. Ficou claro naquele momento que a vida de Adriano perto de Kamel não seria fácil. Não foi.
Adriano logo foi tocar sua vida longe da Globo, e o Fantástico continuaria a padecer dos problemas que levaram a Globo a procurá-lo — desinspiração editorial, perda de repercussão e um Ibope brutalmente em queda para um programa que se confundira com a noite de domingo dos brasileiros por muitos anos.
O caso do Fantástico me faria lembrar um comentário que certa vez ouvi, segundo o qual a força criativa da Globo repousava em Boni, “um fanático guardião da qualidade”. Achei isso podia fazer sentido ao ler que, numa corrida em que Galvão Bueno gritou triunfal “eu já sabia, eu já sabia!” quando Senna entregou a vitória ao segundo piloto de sua equipe, Boni teve uma reação irada no bastidor. “Se sabia, por que não contou para o espectador?”, perguntou a Galvão.
No Conedit, numa mesa em forma de U, João Roberto se senta no centro, na reunião. À sua esquerda, numa das laterais, fica Merval. Na esquerda, na outra lateral, Kamel. Há uma tensão muda entre os dois, uma espécie de duelo pela preferência e pela simpatia do chefe. São os que mais falam lá.
Não daria o prêmio de simpatia a Kamel. E nem o de originalidade. Logo percebi que ele expressava com ênfase, com a fé cega de um jihadista, amplificando-as, as conhecidas ideias das Organizações Globo.
Não havia desafio a essas ideias, não havia uma tentativa de reolhá-las e reavaliá-las. Bolsa Família? Assistencialismo. Ponto. Cotas em universidades? Absurdo, Ponto.
Um dia comentei isso com Luiz Eduardo Vasconcellos, sobrinho de Roberto Marinho e acionista das Organizações. Luiz teve cargos executivos durante muitos anos, mas depois se recolheu às funções de acionista minoritário.
É simpático, interessado nas coisas do mundo, simples no traje e no trato, como aliás os primos. Você não diz que ele é um dos donos da Globo se se sentar numa reunião do Conedit sem conhecê-lo.
“Sinto falta de pensamentos alternativos na reunião”, comentei com ele num almoço depois da reunião do Conedit. “A sensação que tenho é que as pessoas, principalmente o Kamel e o Merval, falam apenas as coisas que imaginam que o João vai gostar de ouvir.”
Quanto isso devia estar me incomodando estava claro em meu ataque de sinceridade no almoço. Era evidente o risco de que meu comentário fosse espalhado, ainda que Luiz Eduardo sempre tenha me parecido discreto e reservado.
Nas eleições de 2006, meu diagnóstico do Conedit pareceu se confirmar para mim. João Roberto tinha um tom sereno ao debater a campanha. Vi João criticar várias vezes ações de militantes petistas, mas jamais o vi sair do tom no Conedit.
Curiosamente, dada sua posição de dono, o ambiente muitas vezes não refletia a tranquilidade de João Roberto. Kamel e Merval davam um tom épico, em branco e preto, a muitas discussões políticas. Pareciam odiar Lula e qualquer coisa que partisse do governo petista. E pareciam também querer que João Roberto soubesse disso.
Se o julgamento deles fosse acertado, Lula teria errado em todas as decisões que tomou em seus oito anos de administração. Quanto aquela inflamação toda era genuína ou não, é uma dúvida que carrego até hoje. Será que eles pensam mesmo aquilo, ou no bar, com os amigos, dão uma relaxada?
Não sei.
Minha intuição é que, como o poeta segundo Fernando Pessoa, o fingimento é tanto que uma hora você acredita no que fingia antes acreditar. A alternativa é um sentimento automassacrante de que você é uma pena de aluguel.
Há uma lenda urbana segundo a qual Kamel seria o homem por trás da ideologia das Organizações Globo, o “Ratzinger” da empresa. Kamel não é nenhum Hayek, ou Friedman. Não é formulador de pensamentos, não é um filósofo, não é carismático, não é nada daquilo que confere a alguém o poder de persuadir outras pessoas pelo vigor não dos gritos mas das ideias.
Uma designação provavelmente mais próxima da realidade é que Kamel comanda os “aloprados” da Globo. Relembremos. Num determinado momento da campanha de 2006, veio à cena, na mídia, a expressão “aloprados”, para designar petistas mais apaixonados. A certa altura, Lula disse a João Roberto Marinho que seguraria os “seus aloprados”, mas que queria que os “aloprados do outro lado” também fossem controlados.
Foram? Basta ouvir um comentário de Jabor ou um artigo de Merval para saber que não. A cobertura em 2010 do atentado da bolinha de papel contra Serra, ou mais recentemente a forma como foi tratado o julgamento do Mensalão, mostra que os aloprados estão de mãos livres na Globo.
Uma possibilidade que deve ser considerada é que aloprados não sejam exatamente alguns comentaristas ou colunistas, ou mesmo diretores da área jornalística – mas a própria Globo, em sua alma e em sua essência.
Tinha ouvido falar pouco de Ali Kamel, chefe de telejornalismo da Globo, até conhecê-lo no Conedit. É o conselho editorial das Organizações Globo.
Sob o comando de João Roberto Marinho, o Conedit reúne os editores das diversas mídias da Globo para alinhar ações e debater assuntos. As reuniões são realizadas às terças, por volta das 11 horas, no prédio da Globo no Jardim Botânico, no Rio. Frequentei-as ao longo dos dois anos e meio em que fui diretor editorial das revistas da Globo. Quando cheguei, Kamel já estava lá, e ali permaneceu depois que saí.
A referência mais longa que eu tivera dele veio de um jornalista da Abril que o procurara em busca de emprego. A operação deu certo. O jornalista me contou que lera que Kamel valorizava gente que tivesse passado por revistas, por ser mais apta a mexer com palavras. O próprio Kamel passara pela Veja no Rio antes de se fixar nas Organizações Globo.
Kamel não confirma o folclore do carioca simpático, ao contrário de outros editores com quem convivi naquelas manhãs de terça. Seu chefe, Carlos Schroder, um gaúcho afável e sempre com um sorriso no rosto, parece mais carioca que ele.
De um modo geral, o ambiente no Conedit reflete o humor, a alegria, a capacidade de rir dos cariocas. (E também a falta de pontualidade.) Mesmo Merval Pereira, colunista de várias mídias da Globo e ex-diretor do jornal, ri com frequência – uma surpresa para quem lê seus textos em geral num tom de elevada preocupação, quase sempre ligada a um pseudopecado mortal de Lula.
Kamel, pela importância da TV, é uma presença destacada no Conedit. Sua expressão solene sublinha esse papel. Não sei se Kamel costuma beber no bar com os amigos para falar bobagens como futebol, mas não me pareceu.
O que inicialmente mais me chamou a atenção em Kamel, e em muitos outros ali, foi a obsessão com São Paulo. “Os jornais de São Paulo” são constantemente citados, como se representassem o mal. Não sou exatamente um admirador nem do Estadão e muito menos da Folha, mas achava engraçada a presença dos “jornais de São Paulo” nos debates. Nós, jornalistas de São Paulo, jamais nos referimos aos “jornais do Rio”.
Não é exatamente confortável ser um paulista naquele plenário, logo entendi. Eu me sentava num canto próximo da porta, por razões de conforto. “Este é o canto dos paulistas”, ouvi, em tom de brincadeira, uma vez, de Luiz Erlanger, uma espécie de RP do alto escalão das Organizações.
Havia uma alta rotatividade naquele canto. O ambiente é carioca, para o bem e para o mal. E o ressentimento pelo tamanho que São Paulo tomou no Brasil acaba repercutindo, de uma forma ou de outra, em paulistas que participem do Conedit.
Ali Kamel não facilita a vida de ninguém, logo vi. Não é hospitaleiro. Lembro o dia em que Kamel foi apresentado ao jornalista Adriano Silva, na sede da Globo no Rio de Janeiro. Adriano estava sendo contratado com a missão de chacoalhar o Fantástico.
Adriano fizera isso na Superinteressante. Daí o interesse da Globo. Quem negociou com Adriano foi Carlos Schroder, então diretor de telejornalismo da Globo e hoje seu diretor-geral. Eu estava com ambos no prédio do Jardim Botânico quando Ali se aproximou.
Não deu um sorriso para Adriano. Seco, quase ríspido, colocou a Superinteressante na conversa — afirmou que a enteada a lia — para comentar supostos erros da revista. Ficou claro naquele momento que a vida de Adriano perto de Kamel não seria fácil. Não foi.
Adriano logo foi tocar sua vida longe da Globo, e o Fantástico continuaria a padecer dos problemas que levaram a Globo a procurá-lo — desinspiração editorial, perda de repercussão e um Ibope brutalmente em queda para um programa que se confundira com a noite de domingo dos brasileiros por muitos anos.
O caso do Fantástico me faria lembrar um comentário que certa vez ouvi, segundo o qual a força criativa da Globo repousava em Boni, “um fanático guardião da qualidade”. Achei isso podia fazer sentido ao ler que, numa corrida em que Galvão Bueno gritou triunfal “eu já sabia, eu já sabia!” quando Senna entregou a vitória ao segundo piloto de sua equipe, Boni teve uma reação irada no bastidor. “Se sabia, por que não contou para o espectador?”, perguntou a Galvão.
No Conedit, numa mesa em forma de U, João Roberto se senta no centro, na reunião. À sua esquerda, numa das laterais, fica Merval. Na esquerda, na outra lateral, Kamel. Há uma tensão muda entre os dois, uma espécie de duelo pela preferência e pela simpatia do chefe. São os que mais falam lá.
Não daria o prêmio de simpatia a Kamel. E nem o de originalidade. Logo percebi que ele expressava com ênfase, com a fé cega de um jihadista, amplificando-as, as conhecidas ideias das Organizações Globo.
Não havia desafio a essas ideias, não havia uma tentativa de reolhá-las e reavaliá-las. Bolsa Família? Assistencialismo. Ponto. Cotas em universidades? Absurdo, Ponto.
Um dia comentei isso com Luiz Eduardo Vasconcellos, sobrinho de Roberto Marinho e acionista das Organizações. Luiz teve cargos executivos durante muitos anos, mas depois se recolheu às funções de acionista minoritário.
É simpático, interessado nas coisas do mundo, simples no traje e no trato, como aliás os primos. Você não diz que ele é um dos donos da Globo se se sentar numa reunião do Conedit sem conhecê-lo.
“Sinto falta de pensamentos alternativos na reunião”, comentei com ele num almoço depois da reunião do Conedit. “A sensação que tenho é que as pessoas, principalmente o Kamel e o Merval, falam apenas as coisas que imaginam que o João vai gostar de ouvir.”
Quanto isso devia estar me incomodando estava claro em meu ataque de sinceridade no almoço. Era evidente o risco de que meu comentário fosse espalhado, ainda que Luiz Eduardo sempre tenha me parecido discreto e reservado.
Nas eleições de 2006, meu diagnóstico do Conedit pareceu se confirmar para mim. João Roberto tinha um tom sereno ao debater a campanha. Vi João criticar várias vezes ações de militantes petistas, mas jamais o vi sair do tom no Conedit.
Curiosamente, dada sua posição de dono, o ambiente muitas vezes não refletia a tranquilidade de João Roberto. Kamel e Merval davam um tom épico, em branco e preto, a muitas discussões políticas. Pareciam odiar Lula e qualquer coisa que partisse do governo petista. E pareciam também querer que João Roberto soubesse disso.
Se o julgamento deles fosse acertado, Lula teria errado em todas as decisões que tomou em seus oito anos de administração. Quanto aquela inflamação toda era genuína ou não, é uma dúvida que carrego até hoje. Será que eles pensam mesmo aquilo, ou no bar, com os amigos, dão uma relaxada?
Não sei.
Minha intuição é que, como o poeta segundo Fernando Pessoa, o fingimento é tanto que uma hora você acredita no que fingia antes acreditar. A alternativa é um sentimento automassacrante de que você é uma pena de aluguel.
Há uma lenda urbana segundo a qual Kamel seria o homem por trás da ideologia das Organizações Globo, o “Ratzinger” da empresa. Kamel não é nenhum Hayek, ou Friedman. Não é formulador de pensamentos, não é um filósofo, não é carismático, não é nada daquilo que confere a alguém o poder de persuadir outras pessoas pelo vigor não dos gritos mas das ideias.
Uma designação provavelmente mais próxima da realidade é que Kamel comanda os “aloprados” da Globo. Relembremos. Num determinado momento da campanha de 2006, veio à cena, na mídia, a expressão “aloprados”, para designar petistas mais apaixonados. A certa altura, Lula disse a João Roberto Marinho que seguraria os “seus aloprados”, mas que queria que os “aloprados do outro lado” também fossem controlados.
Foram? Basta ouvir um comentário de Jabor ou um artigo de Merval para saber que não. A cobertura em 2010 do atentado da bolinha de papel contra Serra, ou mais recentemente a forma como foi tratado o julgamento do Mensalão, mostra que os aloprados estão de mãos livres na Globo.
Uma possibilidade que deve ser considerada é que aloprados não sejam exatamente alguns comentaristas ou colunistas, ou mesmo diretores da área jornalística – mas a própria Globo, em sua alma e em sua essência.
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2013/10/kamel-e-os-aloprados-da-globo.html
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