quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A Selvagem de Santarém e os estereótipos mal aproveitados

Manuel Dutra
Jornalismo, Ciência, Ambiente


São variadas as opiniões sobre a produção da Globo, A Selvagem de Santarém, muitas delas girando em torno dos eternos estereótipos através dos quais o Brasil e o mundo vêem a Amazônia. Os estereótipos, ou as visões pré-concebidas, existem desde que a humanidade existe. A questão é quando eles realçam as negatividades de um povo ou de uma nação, como se ali nada de positivo houvesse.


Os estereótipos são, digamos, administráveis quando tendem ao negativo. Ao que se saiba, os australianos não se queixam das brincadeiras que os dão como habitantes de uma terra de cangurus, por exemplo. Ao mesmo tempo, os amazônidas ainda se ressentem quando nos perguntam se há jacarés andando nas ruas das nossas cidades.


Os australianos desenvolveram o seu país e hoje sentem orgulho dos seus cangurus. Esse é o caminho: devemos, na Amazônia, chegar rapidamente ao dia em que responderemos: sim, temos jacarés nas calçadas das nossas cidades, eles não mordem, nós também já acabamos com o analfabetismo e a pobreza, temos podução de ciência, temos indústrias. Enfim, somos um povo civilizado que convive com os jacrés, com todas as etnias indígenas, com a floresta e os nossos rios limpos. Assim, o estereótipo negativo perde a alma, se torna familiar e até motivo de orgulho.


Quanto ao programa da Globo, parte de uma série intitulada As Brasileiras, temos que convir que foi uma produção muito pobre em que o autor do texto sequer soube explorar o estereótipos amazônicos. Uma peça sem pé nem cabeça, com cenas como aquela do cara que sai remando numa igara pelo igapó e, ato contínuo, já está todo bem vestido entrando num hotel de Santarém. Pareceu trabalho de alunos iniciantes de televisão dos cursos de jornalismo.


A Selvagem de Santarém foi pobre porque:

1) Não é jornalismo, porque não apresenta os elementos que constituem uma reportagem;

2) Não é documentário, porque bateu em cima do já-visto, não apresenta nada de novo nem busca explicações científicas;

3) Não é novela porque é só um programa parte de uma série. É o que? A que gênero pertence?


Na verdade, é um agrupamento de imagens e sons desconexos; realça a cor ambiente e descarcateriza a visão do índio (índia) e inventa coisas inexistentes na história dos índios amazônicos, como aquele bobagem do caldeirão esperando branco para cozinhar. Uma colagem grosseira das invenções de Indiana Jones. Uma pena, porque poderia ser uma bela apresentação, com o aproveitamento inteligente das imagens e dos sons amazônicos. Bem que os estereótipos poderiam estar melhor na telinha global. Da próxima vez, que sabe...


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Se você desejar aprofundar a reflexão, vai a seguir um breve trecho do meu livro "A natureza da mídia", tratando de índios e estereótipos:


A captura de fragmentos ideológicos do discurso colonial:


Os textos de televisão constroem a imagem do índio e de todos aqueles a quem chamam de povos da floresta como se eles fossem, em vez de sujeitos, objetos da natureza. As matrizes dessas formas de midiatização estão nas produções hollywoodianas que, primeiramente no cinema e depois da televisão, têm, talvez como seu melhor emblema, as cenas dos índios guerreiros galopando seus pôneis, indo à luta contra tropas dos Estados Unidos. Era preciso fazer guerra aos índios, entraves ao progresso, pois são gente para a qual não existe um antes nem existirá um depois: povos sem história, já que os índios hollywoodianos não têm nenhuma história que preceda à chegada dos euro-americanos, conforme se lê em Churchill (1998, p. 168).


Esses relatos cinematográficos e televisivos têm matrizes sabidamente bem recuadas na história da conquista do continente. Os relatos de cronistas e historiadores nem sempre verbalizam essa inexistência de história, porém há momentos em que isso é explícito, no Brasil do século XVII:

...O certo é que essa gente veio de outra parte, porém donde não se sabe, porque nem entre eles há escrituras, nem houve algum autor antigo que deles escrevesse. O que de presente vemos é que são todos de cor castanha e sem barba, e só se distinguem em serem uns mais bárbaros que outros (posto que todos o são assaz) (SALVADOR, [1627] 1965, p. 84).


Sem passado, iguais pela cor castanha e por não terem os homens barba, são bárbaros inclusive porque, nessa forma de relato, são eles que chegaram “de outra parte”, e não os europeus. Mais de 200 anos mais tarde, no processo da expansão colonialista interna dos Estados Unidos, somente era bom índio morto: “Os únicos índios bons que vi, estavam mortos”, disse o general Phil Sheridan, em 1869 (ap. CHURCHILL, idem, p. 178).


Eles inexistem igualmente no cinema, onde são mostrados como grupos sem cultura, sem que suas vidas sejam mostradas tais quais o são, o dia-a-dia de suas famílias é desfocado ou simplesmente omitido. Assim, criado esse vácuo – não têm história, nem cultura, nem vida presente – a cultura dos índios é, no cinema e na TV, construída pelo produtor de filmes e programas segundo suas próprias convicções, pré-concepções ou senso de conveniência (idem, p. 175). Ou seja, o índio que vemos nos filmes de viés hollywoodiano e também os povos da floresta a que assistimos nas emissões de TV, são criaturas midiáticas, laboratoriais, sem relação como o mundo real, concreto, no qual vivem.


Desde fins do século XIX e começos do século XX, nos momentos de afirmação do cinema como mídia autônoma, os primeiros filmes que se podem classificar como cinedocumentários já traziam a nítida marca da relação colonial. Os principais produtores desse período localizavam-se nos países que possuíam impérios coloniais, não surpreendendo, assim, que as primeiras produções refletissem atitudes próprias daquela forma de relação. As filmagens geralmente mostravam os nativos como seres encantadores, primorosos, às vezes misteriosos, pessoas leais e agradecidas pela proteção dos europeus (BARNOWN, 1996, p. 27).Os espectadores metropolitanos “se interessavam com certa benevolência pelos coloridos rituais nativos, pelos costumes, danças e procissões. Os figurantes eram estimulados a exibir estes fatos diante das câmeras”, e, como efeito de sentido, a maior parte deste tipo de filmes deixava nas platéias ocidentais uma sensação tranquilizadora a respeito do sistema colonial. Porém houve exceções (idem, p. 27).

Uma delas foi a exibição, em 1903, da película intitulada “Mujeres nativas abastecen de carbón un bugue y disputan por el dinero”[1], feito nas Indias Ocidentais por um cinegrafista inglês, despertando “sensações perturbadoras” nos espectadores que antes se enterneciam diante de cenas que apagavam a verdadeira face do colonialismo em terras distantes da metrópole. O filme “apresentava um quadro de degradação como poucos alcançaram na tela” (idem). Era o cinema, com sua mobilidade e sedução imagética denunciando práticas rotineiramente apagadas pelo discurso colonial.


Nos séculos precedentes, e mesmo em tempos mais recentes, alguns textos de suporte escritural também haviam, embora marginalmente, focalizado aqueles cujos discursos eram silenciados pela crônica metropolitana (LAS CASAS, 1991), (DANIEL, 1976), (AZEVEDO (1999). Dessa forma, a benevolência e a sensação tranquilizadora de leitores e espectadores de relatos provindos da distância colonial têm uma história de tensionamento, produto de autores que viram a realidade do mundo colonial e, a seu tempo e com as possibilidades que se lhes apresentavam, produziram textos nem sempre coincidentes naquilo que essencializa o discurso do colonialismo.


A essência dessa forma de relato se estabelece na dicotomia civilização/barbárie, que leva os europeus ao esforço para “cristianizar” um conjunto de nações, instituindo a relação eles/nós. Assim, donos da palavra, “é esta [a palavra] a única expressão possível de ordem. Qualquer outra expressão resultará bárbara, isto é, balbuciante, mal dita, mal expressada; e, por isso mesmo, fora do logos que lhe dá sentido" (ZEA, 1990, p. 16-17). No discurso colonial não há, pois, lugar para expressões balbuciantes, porque este discurso se constrói de certezas. Falar de um discurso colonial exige certos cuidados do ponto de vista teórico, já que a era de controle colonialista estrito terminou, ao menos enquanto se entende esse período como a era dos grandes impérios europeus de além-mar, entendida também a colonização como processo que envolve apropriação e controle territorial estrito de uma por outra entidade político-geográfica, combinados com a franca exploração de seus recursos e trabalho, e interferência sistemática na potencialidade da cultura apropriada, não necessariamente homogênea, para a implementação do poder do colonizador (McCLINTOCK, 1994, p. 295). A despeito, obviamente, dos efeitos e das implicações que restam como herança funesta desse processo.


As menções a um outro tipo de colonialismo, o interno, são também recorrentes, processo que ocorre quando a parte dominante de um país trata um grupo ou uma região como se tais entidades fossem colônias estrangeiras.No caso particular da Amazônia brasileira não será apropriado classificá-la como objeto de um processo formal de colonialismo interno, no entanto, como se verá na própria superfície dos discursos aqui analisados, os relatos hodiernos sobre essa parte do Brasil se estruturam a partir elementos que colocam a Amazônia como espaço que se destaca por suas possibilidades de resolução de problemas que lhe são externos. E é justamente essa a essência da ideologia colonialista. Mires (1990, p. 113) considera o Brasil como um dos Estados que cooptam o território amazônico como se essa região fosse um ente formalmente não participante da geografia e da política brasileiras:


La Amazonia es un territorio cooptado por el mercado mundial a través de los estados nacionales – principalmente el brasileño – controlados por grupos políticos y/o militares que constituyen la ‘vanguardia modernista’ del continente latinoamericano. A “colonização dos interiores”, diz Mires (idem) completa-se, nesse caso, com um “colonialismo externo” que tem, como um de seus objetivos, impor a lógica dos ganhos e da acumulação aos consumidores imediatos da natureza, isto é, àqueles a quem a mídia costuma chamar de povos da floresta. Não se trata mais de apropriação de território e exploração direta do trabalho, mas de imposição de uma lógica àqueles considerados como consumidores primários dos recursos naturais.


Estes – os índios e, hoje, os demais povos da floresta – sem que lhes fosse feita nenhuma consulta, passaram a ser “defensores da natureza”, uma aparente inversão discursiva das noções de estorvos à civilização, como foram os índios desenhados desde os primeiros momentos da conquista. Essa aparente transformação se explica: a campanha internacional pela defesa da Amazônia não teve origens puramente éticas, porém mais ecológicas. Afirma Mires (idem, p. 115) que “muitos ecólogos, em diferentes países, advertiram que, com a devastação da Amazônia, se estava destruindo o último pulmão do planeta, cujos efeitos ... poderiam ser catastróficos para outras regiões do mundo”. Foi, então, a partir dessa preocupação que ecólogos (e ecologistas) descobriram os índios aos quais delegaram, sem consultá-los, a responsabilidade de “defensores da natureza”.


O que só na aparência os transforma em sujeitos, no entanto pelas motivações desta delegação, continuam objeto de interesses externos. O exemplo do presidente da França recebendo o cacique Raoni no palácio do Eliseu é emblemático dessa postura, como veremos no prosseguimento deste trabalho. A noção de catástrofe presente nos discursos sobre a Amazônia configura o cerne daquele aspecto de indispensabilidade, ou seja, a região passa a ser objeto central para a sobrevivência do Planeta. A inclusão da noção biológica de pulmão, nessas formulações, dá a medida da catástrofe para um organismo sob risco de parar de respirar, portanto sujeito a morrer. Esse tipo de discurso hipócrita se confronta com a realidade, inclusive do ponto de vista legal,


segundo o qual uma “doutrina da descoberta e seu discurso de conquista” nega aos indígenas os direitos humanos fundamentais. Para povos nativos dos Estados Unidos, América Latina, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, o final de sua história de colonização começa com a recusa, a esses povos, de legitimidade e respeito perante as leis, mantidos pelo discurso racista de conquista. “A doutrina da descoberta e seu discurso de conquista asseguram ao poder legal ocidental a imposição de sua visão de verdade aos povos não-ocidentais por meio de uma legislação racista e de viés colonizador” (WILLIAMS, JR., 1992, p. 325).


Embora de modo aparentemente paradoxal, a negação histórica dos direitos dos índios está presente no texto da Constituição brasileira de 1988, quando seu Capítulo VIII afirma que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses...”. A questão que se coloca é o porquê da inclusão, no texto constitucional, de um direito que lhes foi recusado historicamente. Como nada está por acaso no discurso, será que aí nesse preceito legal não se acha embutida a exclusão de facto dos índios? Certamente continuam, como grupo, tão diferentes e não-ocidentais que o legislador sente a necessidade de afirmar algo que historicamente lhes é negado. Tentativa de, legalmente, restituir ao índio seu papel de sujeito, transformado em objeto pela empresa colonial, situação que perdura por longo tempo após o encerramento da colonização formal?


Ao mesmo tempo, essa inclusão dos índios no discurso legal, distintamente do período em que eles eram classificados por seus senhores como “peças”, objetos de mando e negócio, seria a sua transformação em sujeitos cidadãos. Uma transformação que é produto e produtora de um discurso próprio dos índios, mesmo que ainda incipiente, mas indício do fim da primazia do discurso do branco sobre o índio. É, seguramente, essa capacidade renascente de discursivizar as suas existências e assim inserir-se, afinal, na história séculos após a sua negação, que lhes dá presença no texto maior das leis brasileiras. Não é concessão, mas conquista de direitos tão longamente pisados.



2 comentários:

ojr bentes - Onestaz disse...

Quem não sabe, em Santarém, o que é uma piriguete, pequena piranha!?

ojr bentes - Onestaz disse...

quem não sabe o que é uma piriguete, pequena piranha, em Santarém, foi isso o que o episódio mostrou o vcs não viram, se referindo a ela: "não, não é uma índia, é uma piranha”, e depois ela mordendo ele dentro da água, depois a cobra tatuada, estigmatizada aos 12 anos, quando foi "furada", ou achavam que ninguém sabe qual é a realidade de Santarém!?