Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me Vós, Senhor Deus
Se é loucura, se é verdade
Tanto horror perante os céus
(…)
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em Vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz
Quem são?
Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
(…)
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .
Navio Negreiro, de Castro Alves
*
Assusta viver em um país em que é preciso apresentar números sobre a situação da maioria negra de seu povo apesar de que todos a encontram em cada rua, a cada esquina, a todo tempo.
É o vizinho que habita a calçada
Com mulher, filhos e humilhação
Oriunda de mera decisão
Da sociedade, do patrão e da madame
Do jovem rico e de sua indolência infame
Que rouba a vaga do que anseia pela razão
Que para o mancebo rico não faz noção
Eis que brindado com o direito de herança
Que pisoteia do negro a esperança
A pobreza que atinge brancos não é igual à que atinge negros. Desonestidade intelectual devia dar cadeia tanto quanto a material.
A mentira mais hedionda sobre cotas “raciais” que um partido que deveria servir ao povo esgrimiu na Suprema Corte de Justiça foi a de que a política afirmativa cotas não beneficia “pardos”, ainda que centenas de milhares deles já sejam beneficiados.
É mentira que a pobreza que a negros atinge seja a mesma que atinge ao branco. A do negro é muito maior e pior, como IBGE e IPEA comprovam.
97 milhões, entre 190 milhões de brasileiros, declaram ao IBGE que são afrodescendentes. Os negros, pois, somam 51% da população.
O IPEA diz que o salário médio do branco é de R$ 1,8 mil e o do negro, R$ 0,8 mil. Diz também que os que se declaram afrodescendentes são 70% dos pobres, 70% dos indigentes e quase 80% dos jovens que morrem por violência.
A Suprema Corte de Justiça de um país que tem 51% de afrodescendentes, tem 1 único magistrado negro e, no Congresso, só 8 % dos deputados são negros.
Na propaganda, nas novelas, nos bunkers dourados da elite branca, ditos “condomínios”, onde o egoísmo se resguarda da pobreza matizada, erigida pela mais pura vilania, a unanimidade racial de tons rosados e louros com um frio olhar azul ou verde deu o primeiro passo rumo à lata de lixo da história.
Não faltam números para provar que a pobreza, no Brasil, tem cor. Não faltam cenas que comprovam a cor da pobreza, a cor da humilhação, a cor da injustiça. O que falta é vergonha na cara a um setor minoritário e rico da sociedade. Vergonha de mentir impiedosamente e, ainda, afetando indignação.
A Suprema Corte do Brasil marca mais um tento no ranking da pacificação social, da igualdade, da verdade e da Justiça. Que cada voto, de cada magistrado, seja um libelo contra a hipocrisia desumana que pisoteia a imensa maioria deste povo brasileiro. Um libelo acusatório a uma minoria microscópica que tem a audácia de negar uma realidade que lhe lambe as faces a cada passo nas ruas.
Eliminado o produto da hipocrisia e da desonestidade intelectual, resta descobrir como instilar ética e sinceridade nessa parcela diminuta da nação que tanto mal vem produzindo à sua quase totalidade ano após ano, década após década, século após século.
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