Jornalista questiona condenações e diz que mensalão transformou-se em julgamento político |
Um julgamento sem provas, com grave desrespeito à Constituição Federal e
transformado em espetáculo midiático. Esta é a síntese da leitura do
jornalista Paulo Moreira Leite após quatro meses de investigação sobre a
Ação Penal 470, conhecida como mensalão. Enquanto correu o processo,
ele escreveu de forma paralela na internet a sua visão dos fatos
jurídicos, políticos e midiáticos relacionados ao tema. Paulo Moreira
Leite teve acesso aos autos do processo, ao relatório da Polícia
Federal e acompanhou a sessão que condenou os principais quadros
políticos do governo Lula à prisão. O material virou o livro “A Outra
História do Mensalão – As Contradições de um Julgamento Político”,
lançado no começo de 2013.
O julgamento, considerado por parte da imprensa brasileira como o maior
da história do país no que se refere ao combate à corrupção, é visto
de forma diferente pelo jornalista, diretor da sucursal da Isto É em Brasília e que já trabalhou em veículos como Época e Veja.
Em sua opinião, o julgamento produziu condenações por antecipação,
desconsiderou a investigação da Polícia Federal, manteve um desprezo
excessivo pela isenção e revelou que a mídia acuou o Supremo Tribunal
Federal (STF). “A imprensa deu de barato o caso e torcia pela
condenação. Colocar a transmissão ao vivo é uma maneira de jogar o
público em cima do Tribunal. Muitos juízes ficaram intimidados. Já
outros ficaram contentes e gostaram disso”, falou em entrevista ao Sul21.
Enquanto o envolvimento de grupos econômicos que contribuíram com as
empresas do publicitário Marcos Valério não foi devidamente investigado,
na visão de Moreira Leite, os réus José Dirceu e José Genoíno teriam
sido severamente punidos sem direito ao contraditório, respondendo a uma
acusação de desvio de dinheiro público que o jornalista considera
vazia. “Ele (procurador-geral da República, Roberto Gurgel)
supõe que era um suborno. Convencido disso, ele conta uma história que
até faz sentido, mas não prova nada. Cadê os pagamentos? Suborno para
quê? Um suborno é feito em contrapartida de alguma coisa. Onde estão as
votações compradas? Não há nenhuma votação em que se comprove que
parlamentares foram pagos para aprovar projetos do governo”, conclui.
Paulo Moreira Leite lembra outros exemplos da atuação do STF no Brasil,
que permitem fazer uma reflexão sobre o exercício da democracia.
Segundo ele, o STF teria mantido uma postura de tolerância em relação a
possíveis corruptores em outros casos que nem sequer entraram na pauta
dos ministros. “O que eu posso dizer é que claramente houve uma decisão
seletiva de desmembrar o mensalão do PSDB mineiro, mandando quem não
tinha direito a foro privilegiado a ser julgado em primeira instância, o
que já dá direito a recorrer. Isso é algo que os julgados pelo STF não
têm. Isto é um elemento básico (demonstrando) que houveram dois tratamentos”, afirma.
“Várias das acusações tidas como verdades absolutas não estão comprovadas, ou estão comprovadas com indícios frágeis, ou ainda, foram contestadas por outras investigações”
Sul21 – Porque você resolveu
escrever o livro ‘A Outra Historia do Mensalão – As contradições de
julgamento político’? Suas apurações sobre a Ação Penal 470 já eram
escritas na coluna que o senhor mantinha na Revista Época durante o
processo.
Paulo Moreira Leite – Muitas pessoas me liam na coluna e
sugeriam que eu tinha que reunir tudo que eu dizia em um livro. Eu até
apreciava a ideia, mas comecei a pensar seriamente nisso quando vi que
havia uma discussão de conjunto no que eu escrevia. O livro permite
algo que a internet não permite, que é fazer a abordagem do julgamento
inteiro, fazendo uma reflexão unificada. Uma exposição sem cortes, com
coerência, prefácio e conclusão. Eu penso que, dada a importância que o
julgamento ganhou, era algo necessário. E creio que justifica a
aceitação que o livro está tendo.
Paulo Moreira Leite: “estou convencido de que tivemos penas muito pesadas para provas muito fracas” Foto: Jair Bertolucci / TV Cultura |
Sul21 – Na coletiva de lançamento, o
senhor referiu-se à uma insuficiência na cobertura jornalística sobre o
julgamento, o que também influenciou na realização do livro.
Paulo Moreira Leite – O Janio de Freitas (colunista da Folha de S. Paulo),
que escreveu o prefácio do livro, diz que eu cobri o julgamento como
jornalista. Ele disse que o que deveria ter sido normal, que é o
trabalho de jornalista, foi raridade no processo. Eu concordo com o que
ele diz. A imprensa teve um comportamento tendencioso, indefinido e
pouco jornalístico. O importante do meu livro é que foi jornalístico. Eu
procurei contradições, compreender o que aconteceu, fiz
questionamentos. Por isso os artigos do blog repercutiam e tornam o
livro interessante. Foi o eu quis fazer, ao menos.
Sul21 – A ausência de provas, ou o uso de provas muito rasas para
penas tão severas, foi um dos principais argumentos da defesa dos réus.
Na tua apuração jornalística sobre o caso, quais foram as provas
encontradas?
Paulo Moreira Leite – O que estou convencido, agora que o
julgamento acabou e depois de ter lido boa parte da ação penal, das
argumentações finais, da acusação, dos relatórios da Polícia Federal é
que tivemos penas muito pesadas para provas muito fracas. Esta é para
mim a principal contradição deste julgamento. Várias das acusações que
foram ditas como verdades absolutas não estão comprovadas, ou estão
comprovadas com indícios frágeis, ou ainda, foram contestadas por outras
investigações que não foram respondidas no julgamento. Por exemplo: a
história de que os contratos entre o PT e o Banco Rural eram simulados.
Disseram que estes empréstimos nunca existiram. A Polícia Federal
investigou e concluiu que estes contratos existiram. Foi constatado o
empréstimo, os saques nas agências e o recebimento entre os que deveriam
receber os recursos… Outro exemplo: o Mensalão foi baseado na acusação
de desvio de dinheiro público. A verdade é que não há nenhuma
auditoria do Tribunal de Contas da União, do Banco do Brasil, da
Visanet ou quem quer que seja apontando o desvio de dinheiro público. É
algo impressionante condenar as pessoas por peculato (desvio de dinheiro público)
sem ao menos conseguir provar onde estaria o dinheiro desviado. É uma
contradição importante. Estes são dois exemplos significativos, mas há
outros tantos.
Sul21 – E acusação de suborno por
parte do José Dirceu, dentro de um grande esquema de corrupção? O
senhor acredita que essa descrição é correta?
Paulo Moreira Leite – Quando eu vi a acusação de suborno, feita
na denúncia apresentada pelo procurador Roberto Gurgel… Ele escreve
nas alegações finais: “José Dirceu montou um esquema de suborno”. O
passo seguinte seria ele dizer o dia, a hora, a forma com que eram
feitos os pagamentos. E isso não existe. Ele supõe que era um suborno.
Convencido disso, ele conta uma história que até faz sentido, mas não
prova nada. Cadê os pagamentos? Suborno para quê? Um suborno é feito em
contrapartida de alguma coisa. Onde estão as votações compradas? Não
há nenhuma votação em que se comprove que parlamentares foram pagos
para aprovar projetos do governo. Ao contrário. O caso mais citado, que
é a votação da Reforma da Previdência, na verdade, o PT tinha tantos
votos favoráveis que expulsou deputados do partido que eram contra, que
saíram (da sigla) e foram depois fundar o PSOL. Era um texto
que tinha o apoio do PSDB e do DEM porque era uma reforma com viés
conservador, a qual estes partidos eram favoráveis. Então, é até meio
surreal imaginar que precisaria subornar alguém para aprovar este
projeto. Era uma agenda do PSDB, que o PT estava assumindo naquele
começo de governo para fazer uma transição suave. Outra coisa: dizer que
a contrapartida de empréstimos falsos do Banco Real seria, por
exemplo, levantar intervenção no Banco Industrial de Pernambuco, o que
valeria milhões de acordo com a denúncia… Esta intervenção só foi
levantada muito tempo depois que o governo Lula tinha terminado e não
rendeu o que se dizia que ia render. Ficou claro que Marcos Valério se
empenhou para levantar esta intervenção e ouviu um “não”. Ele foi 17
vezes ao Banco Central e sempre ouviu “não”. Então como falar em
suborno se a tentativa (de benefício) estava sendo negada? Tem algo errado. Tem coisas faltando nesta história.
“Uma decisão do STF tem caráter final, mas pode ser contestada. Em 1964, o STF referendou que a presidência estava vaga, permitindo a posse de um general. Foi uma decisão correta?”
Sul21 – O senhor referiu-se que nem
mesmo o delator e principal testemunha, Roberto Jefferson, foi preciso
em seus depoimentos. Quais foram as contradições e o papel dele no
processo?
Paulo Moreira Leite – Ele foi apanhado em um vídeo onde um
protegido dele descrevia um esquema do PTB. Como um bom veterano, ele
foi pro contra-ataque estratégico indo para cima do José Dirceu,
acusando o José Dirceu daquilo que ele acusou. O fato é que ele não
tinha como sustentar (as acusações que fez). Quando ele foi dar
depoimento na polícia ele disse uma coisa; em outro depoimento, disse
outra. Ele nunca se desdisse, mas entrou em contradições. É aquela
testemunha que estava procurando achar um caminho. Ele não falou tudo.
Mas chegou a falar em dado momento da Ação Penal 470 que o Mensalão era
uma produção mental. Isto esta gravado ou escrito nos autos do
processo. As pessoas me perguntam se eu acredito no Mensalão e eu digo
isso, que o Roberto Jefferson diz que é uma criação mental (risos).
Sul21 – A cassação dos mandatos dos
deputados condenados, ato que é reservado constitucionalmente ao Poder
Legislativo, foi transferido ao STF por decisão do ministro Celso de
Mello. O senhor se surpreendeu com isso?
Paulo Moreira Leite – Foi um fato muito grave. Mas eu sinto que
ele foi uma consequência do que ocorreu anteriormente. Nós tivemos um
julgamento em que o STF passou a fazer política, passou a dizer como a
política deveria ser feita, com ministros alegando que o governo do
ex-presidente Lula tinha um esquema de golpe de estado, outros fazendo
piada sobre o PT no julgamento. O Procurador-Geral (Roberto Gurgel)
chegou a dizer que seria muito saudável se houvesse interferência do
processo do Mensalão nas eleições de 2012. Tivemos todo um comportamento
do Judiciário que, ao invés de julgar com frieza as provas técnicas,
assumiu postura política. Esta postura extrapolou quando o STF decidiria
sobre a perda de mandato dos deputados. A Constituição diz claramente,
não precisa ser constitucionalista para saber, que isto é uma
prerrogativa do Congresso. Então, passou-se a buscar artigos de leis
inferiores à Constituição, que até onde eu aprendi é a lei maior, para
se sobrepor à Constituição. Isso interferiu na divisão de poderes.
Poderia haver condenação, mas a perda de mandatos quem determina é o
Congresso. Não pode haver um desrespeito a uma Constituinte eleita pelo
povo em 1986, quando milhões de pessoas saíram de casa para votar. Os
deputados se reuniram e aprovaram (a nova Constituição) com
maioria, mais de 400 votos. Foi um processo que reuniu de Fernando
Henrique Cardoso a Luis Inácio Lula da Silva, Aécio Neves, Antonio
Delfim Neto e outros nomes. Nessa Constituinte, esses parlamentares
aprovaram que cabe ao Congresso (cassar mandatos). Até agora, continua me causando grande surpresa que tudo isso tenha sido desrespeitado.
Prefaciado por Jânio de Freitas, livro foi compilado a partir de postagens em blog que Paulo Moreira Leite mantinha no site da Revista Época |
Sul21 – Celso de Melo disse na
época que era uma decisão “inquestionável” e que não seria possível
“desobedecê-lo”. Qual a sua opinião sobre esta postura?
Paulo Moreira Leite – Na verdade, a decisão do STF tem caráter
final, não há dúvida, mas pode ser contestada. Já tinha ocorrido a
condenação; era preciso que o STF cassasse os mandatos? Em 1976, quando
o governo Geisel financiava a ditadura de Pinochet, determinou-se que o
deputado Francisco Pinto fosse cassado e o STF fez a cassação. Será
que foi uma decisão correta? Quando a Olga Benário foi enviada para um
campo de concentração na Alemanha durante a Segunda Guerra, onde seria
morta, foi uma decisão correta? Em 1964, o STF referendou a votação do
Congresso que determinava que a Presidência da República ficasse vaga
e, portanto, seria legitimo dar posse a um general. Não merecia
contestação? O que é complicado hoje é um artigo explícito na
Constituição ser ignorado da forma que foi.
Sul21 – Qual o precedente que a
Justiça brasileira abre com este julgamento, que segundo o senhor é
marcado pela ausência de provas, declarações condenáveis de alguns
ministros e com penas desproporcionais às provas?
Paulo Moreira Leite – Eu acho que o STF tinha a obrigação de
julgar o caso, mas politizou o julgamento. O que presidiu o julgamento,
mais do que análise das provas, do contraditório, argumentos e
contra-argumentos foi uma visão do Ministério Público Federal (MPF), assumida pelo relator (ministro Joaquim Barbosa).
Um relator que não ouviu os dois lados e fez a denúncia de forma
favorável à tese da acusação. O relato de acusação apresentado por ele
já era desvantajoso para a defesa. A ausência de provas foi tratada como
algo sem importância, ou como (se a referência a isso fosse)
uma clara manobra para desviar do suposto fato de que havia desvio de
dinheiro público. Eu penso que houve uma visão de criminalizar a
atividade política e a maneira como a democracia brasileira funciona.
Claro que sabemos que a nossa democracia não é transparente e funciona
historicamente no esquema de caixa dois, dinheiro dado por empresários
que não aparecem, dinheiro sonegado. Isto tudo é crime. Mas é algo
diferente do que foi colocado na Ação Penal 470. Seria justo se as
provas apontassem para um crime deste tipo e as penas dadas aos réus do
Mensalão fossem proporcionais a isso. Mas precisa provar. Não basta
fazer uma narrativa.
“Por enquanto, o único caso real de compra de votos no país, onde a pessoa admite que vendeu seu voto a favor da emenda que permitiu a reeleição do presidente FHC, sequer foi devidamente investigado”
Sul21 – A disposição do ministro
Joaquim Barbosa em encerrar o processo até julho e a investigação
aberta pelo procurador Gurgel sobre o ex-presidente Lula demonstram que
o jogo político do Mensalão ainda não acabou?
Na visão de Paulo Moreira Leite, relator Joaquim Barbosa não ouviu os dois lados e fez a denúncia de forma favorável à tese da acusação Foto: Nelson Jr./STF) |
Paulo Moreira Leite – O julgamento teria acabado. O presidente
Lula chegou a ser interrogado durante o inquérito, com perguntas feitas
pelo próprio relator, e se considerou que nada o incriminava. Ele
ficou fora do processo. O Marcos Valério, por outro lado, deu não se
sabe quantos depoimentos e está em situação complicada. A condenação
dele é muito maior que a dada ao goleiro Bruno, que foi condenado por
mandar matar e esquartejar uma mulher. Mas, quanto ao depoimento de
Valério, ninguém sabe o que ele afirma e (é um depoente que)
merece muito mais suspeitas do que consideração. O que existe é uma
situação política. É fácil neste contexto político transformar uma
pequena coisa em grande coisa. Utilizar declarações do Marcos Valério,
ou coisas que a esposa dele teria dito, em constrangimentos. Cria-se uma
situação política que vira um processo político. Voltar a chamar o
ex-presidente Lula a depor sem nada consistente é muito complicado.
Sul21 – Qual o efeito do Mensalão
nas eleições de 2014? O senhor afirma que este julgamento foi a
primeira derrota política de Lula. Isso enfraquecerá a sua figura?
Paulo Moreira Leite – Este julgamento envolveu ex-ministros,
dirigentes do PT de grande expressão, pessoas da confiança de Lula.
Gerou uma derrota. Condenar o José Dirceu à prisão é uma derrota.
Condenar o José Genuíno à prisão, mesmo que semiaberto, é uma derrota.
Foi um episódio que pode representar uma mudança na situação política,
dependendo de como ele será interpretado e compreendido. Em 2012 havia
uma expectativa grande do impacto deste episódio nas eleições, uma
expectativa que se mostrou errada. O papel do Lula foi fundamental para
a eleição do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. Em vários lugares
do país o PT teve resultados importantes. Agora, resta saber como se
desdobrará o caso até 2014. As pessoas vão querer entender o que
aconteceu. Qual será o impacto das prisões, caso elas sejam realizadas?
Como os eleitores entenderão isso? São perguntas em aberto. O fato é
que são lideranças importantes do PT e do governo petista que estão na
defensiva.
Sul21 – Outros mensalões, como o
mensalão mineiro do PSDB que ocorreu antes deste envolvendo o PT, não
entraram antes na pauta do STF. Como o senhor interpreta isso? Na sua
visão, isso reforça uma ideia de que o julgamento do mensalão do PT foi
político?
Paulo Moreira Leite – Existem várias explicações para isso. Mas
o que eu posso dizer é que claramente houve uma decisão seletiva de
desmembrar o mensalão do PSDB mineiro, mandando quem não tinha direito a
foro privilegiado para ser julgado em primeira instância – o que dá
direito a recorrer, algo que os julgados pelo STF não tiveram. Isto é
um elemento básico (demonstrando) que houveram dois tratamentos.
Como disse o Janio de Freitas: ‘foram dois pesos, dois mensalões’.
Falamos em casos teóricos, com supostas compra de votos, mas não
aparece ninguém no mensalão do PT. Por enquanto, o único caso real de
compra de votos no país, em que existe uma fita gravada onde a pessoa
admite que vendeu seu voto, que foi um parlamentar que votou a favor da
emenda que permitiu a reeleição do presidente FHC (Fernando Henrique Cardoso), sequer foi devidamente investigado. Neste caso, se quisesse acusar (alguém por esse) crime, haviam provas disso. A pessoa admite com suas próprias palavras a venda do voto.
“Voltar a chamar o ex-presidente Lula a depor sem nada consistente é muito complicado”, critica jornalista Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula |
Sul21 – O senhor afirmou que a soberania do povo chegou a ser questionada durante o julgamento. Como?
Paulo Moreira Leite – Quando o STF se considera no direito de
definir a perda de mandatos parlamentares, quando os ministros do STF
fazem comentários políticos sobre a natureza política de um governo
reeleito pelo povo mais de uma vez, quando os ministros chegam a
questionar a capacidade de discernimento do eleitor. O ministro Ayres
Brito chegou a falar que o mensalão era uma forma de golpe. Com isso
ele sugere que as pessoas compram votos de parlamentares e a partir
disso ficam enganando a população, como se ela não tivesse capacidade
de decidir o seu destino. Eu creio que hoje, na medida em que você tem
um poder absolutamente legitimo, mas que não é eleito, que assume
atribuições que cabem à Constituição, que é (resultado) de um
poder eleito, cria-se uma situação que envolve a soberania popular.
Afinal, para que queremos uma democracia? É para que a população, da
forma mais simples possível, tomem as suas decisões individuais. Ninguém
pode tomar a sua vontade acima da vontade do eleitor. Se isso
acontece, comprometemos a democracia. Ao cassar a vontade do eleitor,
fere-se a democracia. Quando não se leva em conta que a nossa
democracia historicamente tem defeitos, especialmente em seu
financiamento baseado em uma hipocrisia do sistema econômico, que quer
mandar na política mas que se esconde… Não tem sentido.
“Tivemos poucos exemplos de jornalistas que foram examinar a qualidade das provas ou perguntar sobre os votos dos ministros. A imprensa deu de barato o caso e torcia pela condenação”
Sul21 – O senhor considera a
cobertura da mídia insuficiente do ponto de vista investigativo neste
caso, que ela própria trata como o maior caso de corrupção do país? Que
análise é possível fazer sobre a prática jornalística brasileira com
este episódio?
Paulo Moreira Leite – Não quero generalizar, mas no caso deste
mensalão que envolveu o PT a mídia parou de investigar faz tempo. Entre
2005 e 2006 ela fez o seu trabalho, denunciou. Mas na hora de ver o
que sobrou das acusações, não se investigou mais nada. Ela cruzou os
braços e ficou esperando as condenações. Foi sintomático que grande
parte dos jornais e revistas nacionais não foi ocupada por reportagens
investigativas: o espaço foi tomado por advogados que faziam análises.
Tivemos poucos exemplos de jornalistas que foram examinar a qualidade
das provas ou perguntar sobre os votos dos ministros. Este é o trabalho
do jornalista. Questionar as afirmações dadas pelos ministros sobre a
pessoa dita como grande testemunha, se ela aparece em vídeo recebendo
dinheiro de outro esquema. Ninguém foi atrás disso. A imprensa deu de
barato o caso e torcia pela condenação. Houve torcida clara. Colocar a
transmissão ao vivo é uma maneira de jogar o público em cima do
Tribunal. Muitos juízes ficaram intimidados. Já outros ficaram
contentes e gostaram disso. De fato, no fundo, não sabíamos se estávamos
diante de um espetáculo ou de algo real.
Sul21 – Mas então a mídia não agiu de forma isenta neste julgamento.
Paulo Moreira Leite – A imprensa tomou o partido da condenação.
Ela queria nada menos que a condenação, com raras exceções. Ela teve
comportamento faccioso. A maioria dos comentaristas e articulistas
queria punição exemplar. Quando se usa a palavra exemplar no meio
jurídico, não se trata de fazer justiça, mas sim de dar exemplo. Quando
se faz isso, se transforma a pessoa em um signo. Pode-se crucificar
alguém com esse tratamento. Muitos casos de linchamento são cometidos
quando as pessoas são transformadas em signos. Lembro-me do caso do
ministro Alceni Guerra, do ex-presidente Collor, que foi crucificado
por várias semanas e estava sendo exemplo para o país. Logo descobriram
que estava tudo errado. Todos tiveram que pedir desculpas, mas o
estrago estava feito. A vida política do ex-ministro ficou praticamente
destruída. O Tribunal não pode trabalhar com signos: tem que trabalhar
com a realidade.
“Mídia parou de investigar mensalão faz tempo. Entre 2005 e 2006 ela fez o seu trabalho, denunciou. Mas na hora de ver o que sobrou das acusações, não se investigou mais nada” Foto: José Cruz/ABr |
Sul21 – Pode se dizer, então, que
parte da mídia não fez bom jornalismo durante o julgamento do mensalão.
Como você definiria, nesse caso, o bom jornalismo?
Paulo Moreira Leite – A minha definição é aquela que se aprende
fora da escola. Eu não estudei Jornalismo, mas aprendi. É sempre a
tentativa de expressar a verdade. Eu creio que os meus textos são isso.
Eu tenho uma opinião, tenho um ponto de partida, mas eu procuro os
dois lados e os fatos. Eu acredito nos fatos. Acredito que o jornalismo
tem o poder de transformação, na medida em que ele ensina a
interpretar os fatos.
Sul21 – O senhor é a favor da democratização da comunicação?
Paulo Moreira Leite – Eu sou a favor da democratização dos
meios de comunicação, sem dúvida. Eu acredito que vivemos uma sociedade
muito mais plural do que os meios de comunicação tradicionais estão
expressando. O fato de termos apenas os meios tradicionais falando com
parte da sociedade exclui outra parte, impede que ela tenha espaço para
expressar-se. A sociedade ganha com isso (democratização da comunicação).
O debate político interno da sociedade deveria ser expresso nos meios
de comunicação em geral – não do modo como ele se dá hoje, com os
grandes meios de comunicação tradicional expressando uma parte da
sociedade e, de outro, a internet expressando a outra parte. Eu não
estou desconsiderando a importância da internet. Eu devo meu livro a
ela, foi na internet que adquiri uma repercussão significativa (que motivou a publicação do livro).
Mas os meios de comunicação deveriam contemplar essa realidade que
vivemos. As concessões ainda são uma herança de concessões feitas no
regime militar. A maioria das emissoras de televisão e rádio têm
vínculos políticos. Isto tem que ser revisto e discutido de alguma
forma. A Constituição Federal, se cumprida, dispensaria qualquer marco
regulatório. A Constituição já impede a concentração, pede pluralidade e
defesa das culturas regionais. A discussão sobre a regulação dos meios
é importante, mas estamos apenas começando.
Rachel DuarteNo Sul21
http://contextolivre.blogspot.com.br/2013/03/nao-ha-evidencia-de-desvio-de-dinheiro.html
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